2007-06-19

"O Leopardo" de Luchino Visconti e "O Crime do Padre Amaro" de Carlos Carrera











O Cinema e a Literatura unem-se para fomentar debates e troca de ideias no Centro de Estudos Camilianos e na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão.

A última semana de cada mês, em Famalicão, é dedicada às tertúlias literárias.

E a semana literária do mês de Maio começou com “O Leopardo” de Luchino Visconti, filme de culto protagonizado por Burt Lancaster, Alain Delon e Claudia Cardinale, que os famalicenses tiveram a oportunidade de (re)ver no Centro de Estudos Camilianos em S. Miguel de Ceide. A obra do realizador baseia-se no romance de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, o aristocrata liberal que, nos últimos anos de vida, se debruçou sobre o tema da circulação das elites, tendo como pano de fundo uma época particularmente quente na história italiana: a unificação da Península, sob o comando das tropas do revolucionário Garibaldi – os Camisas Vermelhas.

Lampedusa inspirou-se na visão do, também, aristocrata e sociólogo Vilfredo Paretto e no seu modelo teórico de circulação das elites, no qual os leões – ou, neste caso, os Leopardos, que é o símbolo presente no brasão da família Salina – estão no topo da pirâmide social. Logo abaixo, estão as raposas – ou chacais, ou hienas – que fazem pressão no sentido de romperem as barreiras sociais que os impedem de se emparelharem com a aristocracia, ou simplesmente as famílias mais ilustres e tradicionais, e passarem, eles próprios, a fazerem parte da elite. Um tema que estava na ordem do dia, nos finais do século XIX e inícios do século XX, que coincide com a juventude do Autor.

Maria João Avilez, na apresentação do filme, salientou a obra cinematográfica como o esforço de conjunto de três príncipes: o autor, Príncipe de Lampedusa que elaborou a trama enquanto repousava, durante os seus dois últimos anos de vida, no Palazzo della Marina; o seu filho adoptivo, que não poupou esforços no sentido de ver publicado o romance; e Luchino Visconti, príncipe de Marone, descendente dos Visconti de Milão. Três aristocratas intelectuais, liberais, que se destacaram por contestarem a ordem estabelecida. Sobretudo Visconti, que alia a sua orientação sexual dissonante de uma maioria heterossexual, à simpatia pelos ideais marxistas, factos lhe granjearam pouca simpatia por parte das facções mais conservadoras. O Cardeal Ruffino chega mesmo a classificar “O Leopardo” como uma das grandes vergonhas sicilianas, colocando a obra em pé de igualdade com… a Máfia!

Maria João Avilez chamou, ainda a atenção para a beleza dos pormenores no filme, o apreço, o preciosismo dos detalhes como “o esvoaçar da cortina durante o rezar do terço no palazzo Salina”, “o pó da estrada impregnado nos fatos ao sair da carruagem para entrar na missa”, “o pormenor de uma jarra” ou ainda “a sucessão de portas que se abrem” para dar a ideia da dimensão do palácio…

Devo, porém acrescentar que, para além do valor histórico e sociológico, o filme é de uma impressionante sensibilidade estética. Todos os planos são autênticos quadros, a lembrar o período do romantismo – sobretudo Winterhalter. Até mesmo a cena na qual Fabrizio Salina vai à sala de banho refazer a sua toilette, durante a noite do baile, e se vê como pano de fundo, uma profusão de vasos sanitários com o conteúdo por despejar, parece tratar-se de uma natureza morta!

Sem falar no refinadíssimo sentido de humor que o realizador tem em comum com o Autor da obra literária na sincronia demonstrada entre o olhar de tédio da Princesa Salina e o oportuno e desdenhoso bocejo do cão de fila, durante um diálogo entre o príncipe e o Padre Pirrone.

Compromissos pessoais impediram a jornalista de trocar impressões com o público no final do filme, mas bastou a sua presença e comentários para despertar a sensibilidade de potenciais cinéfilos.



Já “O Crime do Padre Amaro” de Carlos Carrera, projectado no dia 30 de Maio na Biblioteca Municipal, é uma adaptação livre do romance homónimo de José Maria Eça de Queirós, que insere a trama num contexto actual ao transferir a acção da pacata Leiria de 1875 para uma remota aldeiazinha no México dos nossos dias. Os nomes das personagens são quase todos alterados, tirando o par romântico Amaro e Amélia – papéis brilhantemente interpretados por Gael Garcia Bernal e Ana Claudia Talancón.

O humor sarcástico de Eça de Queirós é religiosamente preservado no filme, cuja primeira cena é composta por uma repelente “tecedeira de anjos” – leia-se: mulher que faz abortos ou se desembaraça de recém-nascidos indesejáveis – apelidada de Dionísia que, ajoelhada diante de um altar, canta um hino, numa horrenda voz de cana rachada. Um quadro hilariante que quebra toda a solenidade do acto. Trata-se de uma vilã cuja presença, ao longo do filme, tem como objectivo o de ridicularizar o peso dos rituais, que nas mentes mais simples, actuam como uma droga e substituem o pensamento crítico.

A pureza e idealismo iniciais de Amaro assim como a inocência de Amélia estão bastante mais enfatizados no filme de Carrera do que no livro do escritor português. A paixão adolescente do jovem casal sobressai em cada olhar, no mais pequeno gesto, dispensando, quase, a necessidade de se tocarem. O cinismo do jovem padre, criado por Eça de Queirós encontra-se, no filme bastante atenuado, sobretudo por um humanismo que não figura em nenhum parágrafo da obra escrita.

O Amaro de Carrera sente remorsos devido à sua pusilanimidade, porque ama, realmente, a jovem, embora não o suficiente para desistir da carreira eclesiástica. Ao contrário do Amaro de Eça que comete, na realidade, um crime – um assassínio – ou, pelo menos, permite que esse crime seja perpetrado, quando estava nas suas mãos impedi-lo, sem demonstrar sombra de verdadeiro arrependimento. Apenas medo de ser punido. A atitude deste Amaro com a jovem repetir-se-à no futuro. O alvo será doravante mulheres casadas, de forma a não acarretar problemas …

Mas se Carrera aligeirou um pouco o carácter do Amaro de Eça, no filme, foi, em contrapartida, impiedoso para com a Igreja enquanto instituição ao mostrar um clero colaborador com o narcotráfico no que respeita ao branqueamento de capitais.

O tema de discussão no final do filme versou sobre a comparação do tratamento do tema em duas épocas e culturas distintas, que têm em comum dois autores, em diferentes áreas, ambos inconformistas e temporalmente separados em mais de um século, ancorados em locais onde a mudança de mentalidades se opera ao ritmo da erosão do granito ou do basalto…



Cláudia de Sousa Dias

Etiquetas:

2007-06-04

Anabela Duarte na Casa das Artes – Kurt Weill e Boris Vian reunidos em palco pela voz sublime da cantora



Foi com um enorme e agradável sentimento de surpresa que desfrutámos, no passado dia 18 de Maio, da presença e da voz de Anabela Duarte, a ex-vocalista dos Mler Ife Dada, na Casa das Artes, com canções de Kurt Weill e Boris Vian, num registo totalmente diferente daquele que ficou conhecido do grande público nos anos 80.

Com este espectáculo, Anabela apresenta o seu último trabalho – Machine Lyrique – composto exclusivamente por canções de Boris Vian e Kurt Weill . Dois autores que, pela temática abordada, foram considerados quase que marginais, pelo facto de se dedicarem a parodiar o meio social e cultural, tanto europeu como americano, no período que se seguiu à Segunda Grande Guerra. Weill foi, inclusive saneado, no seu pais natal, durante o período do nazismo, sendo obrigado a emigrar. A intenção de ambos era, realmente, ultrapassar a fronteira do social e politicamente correcto ao escreverem canções como “Le Deserteur” ou “Je bois” (Vian) ou a homenagearem grupos underground como as prostitutas ou os marinheiros, respectivamente caracterizados por Weill com “J’attends un navire” e “Surabaya Johnny”.

Anabela Duarte deleitou o público, desconhecedor da sua faceta de actriz, à qual junta uma belíssima voz trabalhada, ao longo dos anos, durante os quais desenvolveu uma carreira multifacetada: desde a monografia da sua licenciatura – O Fantástico na Ópera McBeth de Verdi – até à interpretação de peças da cena lírica e clássica de autores como Verdi, Bellini, Donizzetti, Strauss, Satie, Bach, Mozart, Carl Orff e Offenbach, entre muitos outros, passando pela dança – moderna e clássica –, o teatro, a música – piano – e, ainda, uma pós-graduação em antropologia. Tudo mais-valias que, em palco, fazem toda a diferença colocando-a a anos-luz de interpretações medíocres.

O dramatismo que coloca em canções como “Je bois” ou “J’attends un Navire” (Vian) ou a sensualidade natural em “Surabaya Johnny” (Weill) a beleza lírica em “September Song” (Weill), assim como o equilíbrio perfeito entre a musicalidade do canto e a declamação em “Bilbao Song” (Weill) ou “Je suis Snob” (Vian), que se conjuga com um momento de inesperada e extrema sensualidade quando, na interpretação de “Speak Loud”, se parte uma alça do vestido – o erotismo a rebentar pelas costuras a extravasar do vestido, justíssimo – um momento muito “Vian”…

A extensibilidade da voz de Anabela e a facilidade com que se movimenta nos agudos está patente em “Cet Été” (Vian), numa interpretação exigente e fisicamente extenuante em termos de esforço vocal.

Tal como em “Tchaikovski” (Weill) uma composição alucinante, de inspiração cossaca, cujo ritmo atinge um paroxismo quase demoníaco, orgíaco no final – uma das canções mais exigentes de todo o repertório.

Mas a “cereja no bolo” ficou para o final espectáculo: o belíssimo “Youkali Tango” (Weill) onde Anabela Duarte exibe toda a técnica vocal da bela voz de soprano, soberba, desde os pianissíme aos fortíssime, que facilmente dispensa o uso do microfone! Uma interpretação que provocou o inequívoco efeito “pele de galinha”, brilhantemente acompanhada ao piano por Ian Mikittoumov.

O público rendeu-se, definitivamente. Aplaudida de pé, Anabela foi obrigada a regressar mais duas vezes ao palco para os encores. O primeiro, uma sátira de Vian e, para terminar, o inédito e hilariante “La Valse des Chats” do poeta “enfant terrible”, deixando-nos deliciados com linguagem dos miados.

Uma intérprete que prima pela sobriedade do visual. De negro, sem um único enfeite. Sem uma única jóia.

Só o Talento.

E o feitiço da sedução na voz.

Cláudia de Sousa Dias

Etiquetas: